“Deus
não morreu. Ele tornou-se Dinheiro”. Confira abaixo a excelente entrevista com
Giorgio Agamben, um dos principais intelectuais de sua geração

Giorgio
Agamben é um dos maiores filósofos vivos. Amigo de Pasolini e de Heidegger, foi
definido pelo Times e pelo Le Monde como uma das dez mais importantes cabeças
pensantes do mundo. Pelo segundo ano consecutivo ele transcorreu um longo
período de férias em Scicli, na Sicília, Itália, onde concedeu a entrevista.
Segundo
ele, “a nova ordem do poder mundial funda-se sobre um modelo de governabilidade
que se define como democrática, mas que nada tem a ver com o que este termo
significava em Atenas”. Assim, “a tarefa que nos espera consiste em pensar
integralmente, de cabo a cabo, aquilo que até agora havíamos definido com a
expressão, de resto pouco clara em si mesma, “vida política”, afima Agamben.
A
tradução é de Selvino J. Assmann, professor de Filosofia do Departamento de
Filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC [e tradutor de três
das quatro obras de Agamben publicadas pela Boitempo].
“Crise”
e “economia” atualmente não são usadas como conceitos, mas como palavras de
ordem, que servem para impor e para fazer com que se aceitem medidas e
restrições que as pessoas não têm motivo algum para aceitar. “Crise” hoje em
dia significa simplesmente “você deve obedecer!”. Creio que seja evidente para
todos que a chamada “crise” já dura decênios e nada mais é senão o modo normal
como funciona o capitalismo em nosso tempo. E se trata de um funcionamento que
nada tem de racional.
Para
entendermos o que está acontecendo, é preciso tomar ao pé da letra a ideia de Walter
Benjamin, segundo o qual o capitalismo é, realmente, uma religião, e a mais
feroz, implacável e irracional religião que jamais existiu, porque não conhece
nem redenção nem trégua. Ela celebra um culto ininterrupto cuja liturgia é o
trabalho e cujo objeto é o dinheiro. Deus não morreu, ele se tornou Dinheiro. O
Banco – com os seus cinzentos funcionários e especialistas – assumiu o lugar da
Igreja e dos seus padres e, governando o crédito (até mesmo o crédito dos
Estados, que docilmente abdicaram de sua soberania), manipula e gere a fé – a
escassa, incerta confiança – que o nosso tempo ainda traz consigo. Além disso,
o fato de o capitalismo ser hoje uma religião, nada o mostra melhor do que o
titulo de um grande jornal nacional (italiano) de alguns dias atrás: “salvar o
euro a qualquer preço”. Isso mesmo, “salvar” é um termo religioso, mas o que
significa “a qualquer preço”? Até ao preço de “sacrificar” vidas humanas? Só
numa perspectiva religiosa (ou melhor, pseudo-religiosa) podem ser feitas
afirmações tão evidentemente absurdas e desumanas.
A
crise econômica que ameaça levar consigo parte dos Estados europeus pode ser
vista como condição de crise de toda a modernidade?
A
crise atravessada pela Europa não é apenas um problema econômico, como se
gostaria que fosse vista, mas é antes de mais nada uma crise da relação com o
passado. O conhecimento do passado é o único caminho de acesso ao presente. É
procurando compreender o presente que os seres humanos – pelo menos nós,
europeus – são obrigados a interrogar o passado. Eu disse “nós, europeus”, pois
me parece que, se admitirmos que a palavra “Europa” tenha um sentido, ele, como
hoje aparece como evidente, não pode ser nem político, nem religioso e menos
ainda econômico, mas talvez consista nisso, no fato de que o homem europeu – à
diferença, por exemplo, dos asiáticos e dos americanos, para quem a história e
o passado têm um significado completamente diferente – pode ter acesso à sua
verdade unicamente através de um confronto com o passado, unicamente fazendo as
contas com a sua história.
O
passado não é, pois, apenas um patrimônio de bens e de tradições, de memórias e
de saberes, mas também e sobretudo um componente antropológico essencial do
homem europeu, que só pode ter acesso ao presente olhando, de cada vez, para o
que ele foi. Daí nasce a relação especial que os países europeus (a Itália, ou
melhor, a Sicília, sob este ponto de vista é exemplar) têm com relação às suas
cidades, às suas obras de arte, à sua paisagem: não se trata de conservar bens
mais ou menos preciosos, entretanto exteriores e disponíveis; trata-se, isso
sim, da própria realidade da Europa, da sua indisponível sobrevivência. Neste
sentido, ao destruírem, com o cimento, com as autopistas e a Alta Velocidade, a
paisagem italiana, os especuladores não nos privam apenas de um bem, mas
destroem a nossa própria identidade. A própria expressão “bens culturais” é
enganadora, pois sugere que se trata de bens entre outros bens, que podem ser
desfrutados economicamente e talvez vendidos, como se fosse possível liquidar e
por à venda a própria identidade.
Giorgio
Agamben
Giorgio
Agamben nasceu em Roma em 1942. É um dos principais intelectuais de sua
geração, autor de muitos livros e responsável pela edição italiana das obras de
Walter Benjamin (Foto: Arquivo)
Há
muitos anos, um filósofo que também era um alto funcionário da Europa nascente,
Alexandre Kojève, afirmava que o homo sapiens havia chegado ao fim de sua
história e já não tinha nada diante de si a não ser duas possibilidades: o
acesso a uma animalidade pós-histórica (encarnado pela american way of life) ou
o esnobismo (encarnado pelos japoneses, que continuavam a celebrar as suas
cerimônias do chá, esvaziadas, porém, de qualquer significado histórico). Entre
uma América do Norte integralmente re-animalizada e um Japão que só se mantém
humano ao preço de renunciar a todo conteúdo histórico, a Europa poderia
oferecer a alternativa de uma cultura que continua sendo humana e vital, mesmo
depois do fim da história, porque é capaz de confrontar-se com a sua própria
história na sua totalidade e capaz de alcançar, a partir deste confronto, uma
nova vida.
A
sua obra mais conhecida, Homo Sacer, pergunta pela relação entre poder político
e vida nua, e evidencia as dificuldades presentes nos dois termos. Qual é o
ponto de mediação possível entre os dois pólos?
Minhas
investigações mostraram que o poder soberano se fundamenta, desde a sua origem,
na separação entre vida nua (a vida biológica, que, na Grécia, encontrava seu
lugar na casa) e vida politicamente qualificada (que tinha seu lugar na
cidade). A vida nua foi excluída da política e, ao mesmo tempo, foi incluída e
capturada através da sua exclusão. Neste sentido, a vida nua é o fundamento
negativo do poder. Tal separação atinge sua forma extrema na biopolítica
moderna, na qual o cuidado e a decisão sobre a vida nua se tornam aquilo que
está em jogo na política.
O
que aconteceu nos estados totalitários do século XX reside no fato de que é o
poder (também na forma da ciência) que decide, em última análise, sobre o que é
uma vida humana e sobre o que ela não é. Contra isso, se trata de pensar numa
política das formas de vida, a saber, de uma vida que nunca seja separável da
sua forma, que jamais seja vida nua.
O
mal-estar, para usar um eufemismo, com que o ser humano comum se põe frente ao
mundo da política tem a ver especificamente com a condição italiana ou é de
algum modo inevitável?
Acredito
que atualmente estamos frente a um fenômeno novo que vai além do desencanto e
da desconfiança recíproca entre os cidadãos e o poder e tem a ver com o planeta
inteiro. O que está acontecendo é uma transformação radical das categorias com
que estávamos acostumados a pensar a política. A nova ordem do poder mundial
funda-se sobre um modelo de governamentalidade que se define como democrática,
mas que nada tem a ver com o que este termo significava em Atenas. E que este
modelo seja, do ponto de vista do poder, mais econômico e funcional é provado
pelo fato de que foi adotado também por aqueles regimes que até poucos anos
atrás eram ditaduras. É mais simples manipular a opinião das pessoas através da
mídia e da televisão do que dever impor em cada oportunidade as próprias
decisões com a violência. As formas da política por nós conhecidas – o Estado
nacional, a soberania, a participação democrática, os partidos políticos, o
direito internacional – já chegaram ao fim da sua história. Elas continuam
vivas como formas vazias, mas a política tem hoje a forma de uma “economia”, a
saber, de um governo das coisas e dos seres humanos. A tarefa que nos espera
consiste, portanto, em pensar integralmente, de cabo a cabo, aquilo que até
agora havíamos definido com a expressão, de resto pouco clara em si mesma,
“vida política”.
O
estado de exceção, que o senhor vinculou ao conceito de soberania, hoje em dia
parece assumir o caráter de normalidade, mas os cidadãos ficam perdidos perante
a incerteza na qual vivem cotidianamente. É possível atenuar esta sensação?
Vivemos
há decênios num estado de exceção que se tornou regra, exatamente assim como
acontece na economia em que a crise se tornou a condição normal. O estado de
exceção – que deveria sempre ser limitado no tempo – é, pelo contrário, o
modelo normal de governo, e isso precisamente nos estados que se dizem
democráticos. Poucos sabem que as normas introduzidas, em matéria de segurança,
depois do 11 de setembro (na Itália já se havia começado a partir dos anos de
chumbo) são piores do que aquelas que vigoravam sob o fascismo. E os crimes
contra a humanidade cometidos durante o nazismo foram possibilitados exatamente
pelo fato de Hitler, logo depois que assumiu o poder, ter proclamado um estado
de exceção que nunca foi revogado. E certamente ele não dispunha das
possibilidades de controle (dados biométricos, videocâmeras, celulares, cartões
de crédito) próprias dos estados contemporâneos. Poder-se-ia afirmar hoje que o
Estado considera todo cidadão um terrorista virtual. Isso não pode senão piorar
e tornar impossível aquela participação na política que deveria definir a
democracia. Uma cidade cujas praças e cujas estradas são controladas por
videocâmeras não é mais um lugar público: é uma prisão.
A
grande autoridade que muitos atribuem a estudiosos que, como o senhor,
investigam a natureza do poder político poderá trazer-nos esperanças de que,
dizendo-o de forma banal, o futuro será melhor do que o presente?
Otimismo
e pessimismo não são categorias úteis para pensar. Como escrevia Marx em carta
a Ruge: “a situação desesperada da época em que vivo me enche de esperança”.
Podemos
fazer-lhe uma pergunta sobre a aula que o senhor deu em Scicli? Houve quem
lesse a conclusão que se refere a Piero Guccione como se fosse uma homenagem
devida a uma amizade enraizada no tempo, enquanto outros viram nela uma
indicação de como sair do xeque-mate no qual a arte contemporânea está
envolvida.
Trata-se
de uma homenagem a Piero Guccione e a Scicli, pequena cidade em que moram
alguns dos mais importantes pintores vivos. A situação da arte hoje em dia é
talvez o lugar exemplar para compreendermos a crise na relação com o passado,
de que acabamos de falar. O único lugar em que o passado pode viver é o
presente, e se o presente não sente mais o próprio passado como vivo, o museu e
a arte, que daquele passado é a figura eminente, se tornam lugares
problemáticos. Em uma sociedade que já não sabe o que fazer do seu passado, a
arte se encontra premida entre a Cila do museu e a Caribdis da mercantilização.
E muitas vezes, como acontece nos templos do absurdo que são os museus de arte
contemporânea, as duas coisas coincidem.
Duchamp
talvez tenha sido o primeiro a dar-se conta do beco sem saída em que a arte se
meteu. O que faz Duchamp quando inventa o ready-made? Ele toma um objeto de uso
qualquer, por exemplo, um vaso sanitário, e, introduzindo-o num museu, o força
a apresentar-se como obra de arte. Naturalmente – a não ser o breve instante
que dura o efeito do estranhamento e da surpresa – na realidade nada alcança
aqui a presença: nem a obra, pois se trata de um objeto de uso qualquer,
produzido industrialmente, nem a operação artística, porque não há de forma
alguma uma poiesis, produção – e nem sequer o artista, porque aquele que assina
com um irônico nome falso o vaso sanitário não age como artista, mas, se muito,
como filósofo ou crítico, ou, conforme gostava de dizer Duchamp, como “alguém
que respira”, um simples ser vivo.
Em
todo caso, certamente ele não queria produzir uma obra de arte, mas desobstruir
o caminhar da arte, fechada entre o museu e a mercantilização. Vocês sabem: o
que de fato aconteceu é que um conluio, infelizmente ainda ativo, de hábeis
especuladores e de “vivos” transformou o ready-made em obra de arte. E a
chamada arte contemporânea nada mais faz do que repetir o gesto de Duchamp,
enchendo com não-obras e performances em museus, que são meros organismos do
mercado, destinados a acelerar a circulação de mercadorias, que, assim como o
dinheiro, já alcançaram o estado de liquidez e querem ainda valer como obras.
Esta é a contradição da arte contemporânea: abolir a obra e ao mesmo tempo
estipular seu preço.
Sobre
o autor
Giorgio
Agamben nasceu em Roma em 1942. É um dos principais intelectuais de sua
geração, autor de muitos livros e responsável pela edição italiana das obras de
Walter Benjamin. Deu cursos em várias universidades europeias e
norte-americanas, recusando-se a prosseguir lecionando na New York University em
protesto à política de segurança dos Estados Unidos. Foi diretor de programa no
Collège International de Philosophie de Paris. Mais recentemente ministrou
aulas de Iconologia no Istituto Universitario di Architettura di Venezia
(Iuav), afastando-se da carreira docente no final de 2009. Sua obra,
influenciada por Michel Foucault e Hannah Arendt, centra-se nas relações entre
filosofia, literatura, poesia e, fundamentalmente, política. Entre seus
principais livros destacam-se Homo sacer (2005), Estado de exceção (2005),
Profanações (2007), O que resta de Auschwitz (2008) e O reino e a glória
(2011), os quatro últimos publicados no Brasil pela Boitempo Editorial.
Instituto
Humanitas Unisinos
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