Retirado do blog Litera Tortura de Anastácia
Ottoni, que reproduzo abaixo:
“Era
um dia frio e luminoso de abril, e os relógios davam 13 horas.”. Assim abre-se
a história do livro que George Orwell – com uma espécie de Zeitgeist - escreve
para retratar uma distopia muito próxima à realidade. Em 1944 – três anos antes
da escrita e cinco anos antes da publicação de “1984” -, Orwell detalhou em
carta a tese de seu grande romance para alertar sobre a possibilidade do
surgimento de Estados policiais totalitários que seriam capazes de dizer que
“dois e dois são cinco”. Tal carta nos coloca na mente do autor, que em 1944 já
sabia que um dia seríamos monitorados.
“Para
Noel Willmett
18-Mai-1944
10a
Mortimer Crescent NW 6
Caro
Sr. Willmett,
Muito obrigado por sua carta. Você questiona
se o totalitarismo, o culto a um líder, etc, estão realmente em progressão e
usa como exemplo o fato de que eles não estão aparentemente crescendo neste
país e nem nos EUA.
Devo
dizer que acredito, ou temo, que tomando o mundo como um todo, essas coisas
estão a crescer. Hitler, sem dúvida, irá desaparecer em breve, mas apenas à
custa do fortalecimento de (a) Stalin, (b) os milionários anglo-americanos e
(c) os tipos de Fuhrers mesquinhos no nível de De Gaulle. Todos os movimentos
nacionais em todos os lugares, até mesmo aqueles que se originam na resistência
à dominação alemã, parecem tomar formas não-democráticas para ficar em torno de
alguns Fuhrers sobre-humanos (Hitler, Stalin, Salazar, Franco, Gandhi e De Valera
são exemplos variados) e a adotar a teoria de que o fim justifica os meios. Em
todos os lugares, o movimento do mundo parece ser na direção das economias
centralizadas que podem ser feitas para “trabalhar” em um sentido econômico,
mas que não são democraticamente organizadas e que tendem a estabelecer um
sistema de castas. Com isso vem os horrores do nacionalismo emotivo e uma
tendência para não acreditar na existência de uma verdade objetiva, porque
todos os fatos devem se encaixar nas palavras e profecias infalíveis de algum
Fuhrer. A história, em algum sentido, já deixou de existir. Não existe tal
coisa como uma história dos nossos tempos que poderia ser universalmente
aceita, e as ciências exatas estão ameaçadas de extinção no momento em que se tenha
necessidade de militar para colocar as pessoas de volta em seus lugares. Hitler
diz que os judeus começaram a guerra, e que se ele sobreviver, isso se tornará
a história oficial. Ele não pode dizer que dois e dois são cinco, porque, para
os fins de, digamos, balística, tem que ser quatro. Mas se o tipo de mundo que
receio chegar – um mundo de dois ou três grandes superestados que são incapazes
de conquistar um ao outro – dois e dois podem se tornar cinco se o Fuhrer
desejar. Isso, tanto quanto posso ver, é o rumo em que o globo vem tomando
efetivamente – apesar de, é claro, o processo ser reversível.
Quanto
à imunidade comparativa da Grã-Bretanha e dos EUA, o que quer que os
pacifistas, etc, possam dizer, nós não nos tornamos totalitários ainda e isso é
um sintoma muito esperançoso. Acredito profundamente – como expliquei em meu
livro “The Lion and the Unicorn” – no povo inglês e em sua capacidade de
centralizar sua economia sem destruir a liberdade ao fazê-lo. Mas é preciso
lembrar que a Grã-Bretanha e os EUA não foram realmente tentados, não
conheceram a derrota ou o sofrimento grave e há alguns sintomas ruins para
equilibrar os bons. Para começar, há uma indiferença geral em relação à
decadência da democracia. Você percebe, por exemplo, que agora ninguém na
Inglaterra com menos de 26 anos tem direito ao voto e que até onde se pode ver,
a grande maioria nessa idade não dá a mínima para isso? Em segundo lugar, há o
fato de que os intelectuais são mais totalitários na perspectiva do que as
pessoas comuns. No geral, a intelligentsia inglesa se opôs a Hitler, mas com o
preço de aceitar Stalin. A maioria deles estão perfeitamente prontos para
métodos ditatoriais, polícia secreta, falsificação sistemática da história,
etc, desde que eles achem que é no “nosso” lado. Na verdade, a afirmação de que
não temos um movimento fascista na Inglaterra, em grande parte, significa que o
jovem neste momento vê seu Fuhrer em outro lugar. Não se pode ter certeza de
que isso não vai mudar, nem se pode ter certeza de que as pessoas comuns não
vão pensar daqui a dez anos como os intelectuais de agora. Espero que não, eu
mesmo confiaria que não, mas se assim for, será à custa de luta. Se alguém
simplesmente proclama que tudo é para o melhor e não aponta para os sintomas
sinistros, este alguém está apenas ajudando a trazer o totalitarismo para
perto.
Você
também pergunta: se eu acho que a tendência mundial é na direção do fascismo,
por que eu apoiaria a guerra? É uma escolha entre males – imagino que quase
todas as guerras sejam assim. Eu sei o suficiente sobre imperialismo britânico
para não gostar, mas gostaria de apoiá-lo contra o nazismo ou o imperialismo
japonês, como o mal menor. Da mesma forma que eu iria apoiar a URSS contra a
Alemanha, porque acho que a URSS não pode escapar completamente de seu passado
e mantém bastante as ideias originais da Revolução para torná-la um fenômeno
mais esperançoso do que a Alemanha nazista. Eu acho – e tenho pensado nisso
desde o início da guerra, em 1936 ou por aí - que a nossa causa é a melhor, mas temos
que continuar a fazê-la a melhor, o que envolve críticas constantes.
Atenciosamente,
Geo.
Orwell
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