Nesse
cenário, a pedagoga freiriana Patrícia Alves formulou uma teoria. Elegante.
Sofisticada. Simples. Sintética, como devem ser os melhores conceitos: “há em
curso um processo de desapropriação cultural dos pretos nos espaços negros;
querem as culturas negras, sem pretas e pretos!”
Segundo
ela, não é uma mera apropriação – “eu tomo e pronto; é meu!” Ou um processo de
universalização do acesso à cultura negra, “porque somos uma cultura mestiça”.
Nada disso! É o desalojamento do negro de sua cultura.
O
sonho dos higienistas do século 19 realizado, sem derramamento de sangue. Limpo
é eficiente.
Aberto
o “círculo de cultura”, o debate fluiu.
(Lembrei-me
de uma conversa que tive há 19 anos com uma aluna de antropologia da USP, numa
casa de candomblé Ketu, na capital paulista. No final do ato sagrado, abriu-se
uma roda de samba, seguida de uma de capoeira. Do nada, a menina disse: “Mestre
Bimba degradou a capoeira!”. De bate pronto, respondi: “você não tem a
experiência, o jogo, a idade e nem a cor pra falar de Mestre Bimba”. A garota
arregalou os olhos, balbuciou algo inaudível, e foi embora).
Em
recente aula ministrada no curso de formação para professores, promovido pelo
Centro de Estudos Africanos [CEA/USP], e coordenado pelo Prof. Dr. Kabengele
Munanga, ao final, no debate, uma das participantes disse que uma casa de
candomblé em São Paulo não aceita negras e negros, só brancos, “para manter o
nível”.
Esses
fragmentos de narrativas – que se repetem em diversos espaços, com diversos
protagonistas – corrobora a tese da pedagoga: sim à cultura negra; não à
presença dos negros e das negras, porém.
Sonho
da elite monarquista/republicana brasileira: se não destruo, desarticulo.
João
Batista de Lacerda (1846-1912) disse, em 1911, no Congresso Universal das
Raças, realizado em Londres, que em cem anos, em 2011, a cultura e a presença
negras seriam lembranças distantes, no país.
Para
ele, a tela Redenção de Can, do pintor espanhol Modesto Brocos y Gómez
(1852-1936), de 1895, era a representação do futuro nacional. No quadro, uma
senhora negra agradece “aos céus” pelo pele clara do neto, sentado no colo da
filha mestiça, ao lado do marido branco. Teoria do branqueamento.
O
período era o ponto de ruptura no sistema de produção. A transição do trabalho
forçado para o assalariado foi o da experimentação de estratégias de etnocídio
e genocídio da população negra.
Segundo
o sociólogo Clóvis Moura (1925-2003), em 1850 criam-se as bases para a
articulação de um Estado Nacional autoritário de segregação radical e ampliada
do segmento não branco da população.
Sem
poupança individual e familiar para “compra um pedaço de chão”, a Lei da Terra
([1]Lei
601, de 18 de setembro de 1850) privou os afrodescendentes do meio de produção
mais importante da época.
A
decisão de desmonte seguro, lento e gradual do estatuto da escravidão
aprofundou as dificuldades materiais e imateriais do período [Lei do Ventre
Livre, 1871; Lei dos Sexagenários, 1885; Lei da Abolição, 1888].
Entre
os anos de 1870 e 1930, mais de 3 milhões de europeus ingressaram no país,
segundo Darcy Ribeiro. O objetivo era substituir a população preta pela branca.
Ao chegaram, encontraram um país erguido por mãos negras e indígenas, com o território
desenhado, a língua nacional estabelecida e o congelado sistema social, que
aprisionava os descendentes de africanas e africanos na base da pirâmide.
(No
início, as elites queriam europeus do norte, mas se contentaram com os do sul
de origem latina: portugueses, espanhóis e italianos)
É
com esse pano de fundo que emergem as “rodas sagradas” das culturas negras:
candomblé, samba e capoeira. Acossado pelo estado policial, o candomblé montou
sua fronteira de resistência “do lado de cá do muro”. Cercou-se. Fechou-se.
Protegeu-se, para se preservar. E conseguiu!
Júlio
Braga mostrou – no seu livro Na gamela do feitiço e em suas pesquisas – a
magnitude do que foi a perseguição às tradições afrodescendentes nesse período.
O samba fechou-se no morro. Espaço de transculturalidade africanas e
inventou-se. Fortaleceu-se. Derramou-se sobre a cidade.
A
capoeira – e esse é um traço decisivo da sua contribuição – ganhou o espaço
público. As “maltas” (Nagoas e Guaiamus) bagunçaram esse período de disruptiva
transição, às vezes ao lado dos monarquistas, outras ao lado dos republicanos,
e criaram suas redes, conexões e processos, na esfera pública.
A
característica comum dessas rodas foi a resistência ao genocídio e etnocídio em
curso. Foram espaços de defesa da vida. Da diversidade. Da multiplicidade,
contra o extermínio. Negras e negros ergueram e se alojaram nesses locus de
resistência africana, como agentes de sua história e protagonistas na fundação
de seu futuro.
Desalojá-los
implica desapropriá-los de suas histórias de resistência.
Solano
“Vento Forte Africano” Trindade (1908-1974) sacou isso. Seus esforços – manter
a cultura negra– eram para preservar o logos africano. Como fizeram as velhas e
os velhos que fundaram seu asé e ntu. Como fizeram as velhas e os velhos que
legaram às gerações futuras o samba. Como fizeram as velhas e os velhos que
“inventaram” a capoeira.
Preservar
os espaços negros com suas pretas e pretos é um ato de coragem revolucionária,
no palco das violências articuladas físicas e simbólicas, que visam o etnocídio
e o extermínio da população pobre, negra e da periferia.
Foi
o que sussurraram “as bocas perfumadas” das anciãs e anciões, nos “ouvidos
macios” das suas e seus descendentes. Quem amassou o barro com os pés conhece a
sua densidade!