Após a primeira grande
manifestação do ano contra a Copa do Mundo no Brasil, ganhou corpo na internet
uma campanha orquestrada para desqualificar os que criticam a realização do
megaevento
por Comitê Popular da Copa de São Paulo — publicado
04/02/2014 05:56, última modificação 04/02/2014 15:21

Um vocabulário sinistro povoou
textos em blogs, sites de notícias e postagens nas redes sociais que se
prestaram ao nefasto serviço. Termos como “bandidos”, “fascistas” e até
“terroristas” foram usados para classificar manifestantes, em uma flagrante
demonstração de má fé e irresponsabilidade. Até a presidenta da República
surgiu com uma declaração de que protestar contra a Copa é “ter uma visão
pequena do Brasil”.
Houve ainda quem apelasse para o
nacionalismo, acusando os que são contra a Copa de serem contra o país.
Impossível não lembrar, nesse raciocínio, do governo Médici e o chavão ufanista
“Brasil: Ame-o ou Deixe-o”, empregado a quatro cantos durante um dos períodos
mais repressivos da Ditadura.
No entanto, a estratégia de
desqualificar manifestantes e manifestações tem pernas curtas. Tudo porque,
infelizmente, os legados negativos da Copa são gritantes demais para serem
apagados, e se apresentam como quase que uma inesgotável fonte para mais
protestos.
Aos que não os veem (ou não
querem ver), porém, gostaríamos de abrir os olhos.
A Copa das Remoções
A Ancop (Articulação Nacional dos
Comitês Populares da Copa) estimou que 250 mil pessoas foram ou serão removidas
de suas casas no Brasil, em razão de obras justificadas pela realização da Copa
do Mundo e das Olimpíadas. Há dificuldade em encontrar o número exato de
pessoas afetadas pelas remoções, pois o poder público das cidades-sede
frequentemente se nega ou diz não ter informações sobre os despejos.
O dossiê “Megaeventos e Violações
de Direitos Humanos no Brasil”, produzido pela Ancop, aponta que:
“As estratégias utilizadas
uniformemente em todo o território nacional se iniciam quase sempre pela
produção sistemática da desinformação, que se alimenta de notícias truncadas ou
falsas, a que se somam propaganda enganosa e boatos. Em seguida, começam a
aparecer as ameaças. Caso se manifeste alguma resistência, mesmo que
desorganizada, advém o recrudescimento da pressão política e psicológica. Ato
final: a retirada dos serviços públicos e a remoção violenta”.
As Nações Unidas, em sua revisão
periódica universal de 2012, também questionaram a violação de direitos humanos
na preparação da Copa de 2014, sobretudo no que diz respeito aos despejos
forçados.
Portanto, em nome da Copa do
Mundo, graves violações de direitos humanos foram e estão sendo cometidas.
Comunidades inteiras foram e estão sendo riscadas do mapa, desorganizando a
vida de milhares de pessoas, destruindo laços comunitários de décadas e criando
traumas psicológicos permanentes. Tudo no decorrer de processos marcados pela
verticalidade, truculência e falta de transparência do poder público.
A Copa dos Elefantes Brancos
De acordo com a ONG “Contas Abertas”,
pelo menos quatro dos 12 estádios construídos e/ou reformados para a Copa vão
se transformar em elefantes brancos – isto é, obras caras, vultosas, mas
subutilizáveis.
Os estádios de Brasília, Cuiabá,
Manaus e Natal não deverão sair por menos que 2,8 bilhões de reais no total.
Parte da verba será financiada via BNDES, que tem na sua composição verbas
oriundas do Tesouro Nacional e do Fundo de Amparo ao Trabalhador – públicas,
portanto. Outra parte será composta diretamente por dinheiro público, através
de aporte dos governos estaduais. Em todas essas cidades, os estádios serão
grandes (e caros) demais para locais com histórico de partidas de futebol com
públicos pequenos.
Por exemplo, o estádio Mané
Garrincha, em Brasília, tem capacidade máxima para 71 mil pessoas. A
contradição salta aos olhos quando olhamos para o público do primeiro jogo da
final do campeonato brasiliense do ano passado: parcos 1.956 pagantes. O mesmo
cenário se repete nas outras três cidades mencionadas.
Chegamos ao ponto de em Manaus, o
Grupo de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário, ligado ao Tribunal
de Justiça do Amazonas, aventar a hipótese de transformar o recém-construído
estádio em um ‘presídio’ temporário.
Desta forma, não é difícil
concluir que, passada a Copa, todos os quatro estádios deverão ficar vazios –
fato que se configura em um bilionário descaso com o dinheiro público.
A Copa da Exploração Sexual
Em um país onde reina a pobreza e
a cultura do machismo, a realização da Copa do Mundo, com a consequente chegada
de milhares de turistas, só fará aquecer ainda mais as redes de aliciamento que
se beneficiam do mercado da exploração sexual .
Um estudo da fundação francesa
Scelles comprova que as grandes competições internacionais permitem que as
redes criminosas “aumentem a oferta” de pessoas que são prostituídas. Na África
do Sul, por exemplo, o número estimado aumentou de 100 para 140 mil, durante o
megaevento de 2010.
O Brasil possui um dos maiores níveis
de exploração sexual infanto-juvenil do mundo. De acordo com o Fórum Nacional
de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil, uma rede de organizações
não-governamentais, estima-se que existam 500 mil crianças e adolescentes na
indústria do sexo no Brasil (dados de 2012). Este índice tende a crescer ainda
mais com a Copa de 2014. Em março de 2012, foi denunciado o site “Garota Copa
Pantanal 2014″ que publicava vídeos e fotos de garotas menores de 18 anos em
posições sensuais e com camisetas promocionais alusivas ao torneio de futebol.
Mas tais impactos começaram antes
mesmo dos primeiros turistas chegarem para os jogos. Há denúncias do aumento de
exploração sexual, incluindo crianças e adolescentes, nos arredores dos
estádios e das grandes obras urbanas da Copa, divulgadas recentemente no jornal
britânico “Mirror”, que revelou que garotas de 11 a 14 anos estão se
prostituindo na região do Itaquerão, Zona Leste de São Paulo.
Apesar da exploração sexual ter
sido elencada entre as preocupações das autoridades brasileiras com a
realização do megaevento, pouco foi efetivado em termos de políticas públicas
preventivas ou de combate ao tráfico de mulheres até o momento.
No estado da Bahia, o terceiro em
número de denúncias de violência sexual, apenas em dezembro de 2013 se divulgou
uma campanha com o título “Fim da Prostituição e do Tráfico Infantil”. Além
disso, as poucas campanhas realizadas até agora são relacionadas ao público
infantil, campanhas estas que são mais aceitas pela sociedade e provocam adesão
no combate.
Todavia, campanhas relacionadas a
públicos estigmatizados, como mulheres e travestis, não recebem a devida
ênfase, omitindo-se assim o fato de que se tratam de vítimas das condições
sociais que as levaram à prostituição. Isso nos remete ao histórico de violação
de direitos que perpassa até mesmo os planejamentos das políticas públicas.
Ativistas e organizações que
combatem a exploração de pessoas indicam que o assunto não é prioridade para os
governos, que continuam reprimindo as trabalhadoras e trabalhadores do ramo ao
invés de desenvolver políticas públicas de prevenção à exploração sexual,
dando-lhes outras condições e alternativas de sobrevivência. Políticas deveriam
ter sido intensificadas logo que o país foi eleito sede da Copa do Mundo, o que
não ocorreu.
É valido ressaltar que campanhas
de combate à exploração sexual, até então, pouco tem se relacionado ao nome da
Fifa. Será que esse é mais um requisito para trazer o torneio ao Brasil? Assim
como é exigido a outras corporações, a Fifa também deveria cumprir leis de
responsabilidade social, como, por exemplo, campanhas e ações na área do
combate à exploração sexual, dados os inúmeros alertas e fatos que comprovam
que o Mundial intensifica esse sombrio mercado.
A Copa do Fim da Soberania
Para poder receber a Copa do
Mundo, o governo brasileiro resolveu abrir mão da soberania do país, que em
tese estaria garantida no artigo 1º da Constituição Federal. Fez isso ao
oferecer, ao longo do tempo, uma série de garantias à Fifa nas quais se compromete
em acatar todas as demandas impostas pela entidade.
Dessa forma, em 2012, foi
sancionada a Lei Geral da Copa, que flexibiliza a legislação nacional e cria
zonas de exceção nas cidades-sede.
A lei dá à Fifa a prerrogativa de
estabelecer em torno dos eventos esportivos e da Fan Fest uma área com um raio
de até 2 quilômetros onde somente patrocinadores oficiais poderão comercializar
produtos. Estabelecimentos comerciais regulares não seriam impedidos de abrir
as portas, mas trabalhadores ambulantes – que em São Paulo totalizam cerca de
138 mil pessoas – fatalmente serão reprimidos e impedidos de trabalhar.
A Fifa conseguiu ainda fazer com
que o Estado brasileiro criasse novas tipificações penais. A Lei Geral da Copa
prevê pena de três meses a um ano para os que usarem de forma indevida (isto é,
com fins comerciais) símbolos relacionados ao evento, nacionais e culturais.
Isto significa que palavras como “Mundial”, “Copa”, “Brasil”, “Canarinho”,
entre tantos outros, ficam nas mãos da Fifa e de suas empresas parceiras para
exploração comercial exclusiva.
Esses novos crimes ainda serão
julgados por tribunais de exceção a serem instalados no entorno dos estádios.
Nestes locais, o julgamento será conduzido de forma rápida e com penas mais
duras, prejudicando o direito à ampla defesa – um dos direitos penais mais
básicos de qualquer democracia .
Por fim, é preciso ainda lembrar
que a Lei Geral da Copa concede à Fifa e a suas empresas parceiras isenção
total de todos os impostos brasileiros, seja na esfera municipal, estadual ou
federal. Estimativas do próprio governo brasileiro apontam uma economia à
entidade de 1 bilhão de reais em razão da desoneração fiscal].
Não à toa, a Copa do Mundo no
Brasil deve ser a mais lucrativa da história da Fifa. Segundo a própria
entidade, que em tese não tem fins lucrativos, o megaevento deve render 10
bilhões de reais aos seus cofres.
A Copa da Elitização
Para poder receber a Copa do
Mundo, governos e clubes foram obrigados a construir e reformar estádios
obedecendo a um “padrão Fifa de qualidade”. Isto significou que estádios deixam
de ser “estádios” e passam a ser chamados de “arenas”, onde tudo é de última
geração: do telão que mostra os lances do jogo ao estofado das cadeiras.
A princípio tratam-se de
novidades positivas, mas que só resistem ao nível da aparência. Na prática, há
um trágico efeito colateral em curso: os custos das novas arenas são embutidos
no preço dos ingressos, que ficam mais caros, gerando uma pérfida elitização do
futebol.
A consultoria BDO divulgou um
estudo que abrangeu as nove primeiras rodadas do Brasileirão de 2013. Em um
primeiro momento, foi analisado o preço dos ingressos para partidas realizadas
nas novas arenas reformadas para a Copa das Confederações. Em seguida,
verificou-se o preço dos ingressos para partidas realizadas nos estádios
antigos. O resultado apontou que os ingressos nas novas arenas foram em média
119% mais caros que os nos estádios antigos.
Com as arenas, espaços
tradicionais da torcida brasileira, como as gerais e as arquibancadas, são
extintos ou reduzidos. Em seu lugar se instalam lojas e estabelecimentos
comerciais. Surge assim o “torcedor-consumidor”, caracterizado pelo pouco
envolvimento na política e dia-a-dia de seu time, e que vai ao estádio assistir
a uma partida assim como vai ao cinema de um shopping center.
Nesse processo que veste o manto
do capital imobiliário e especulativo, parcelas mais pobres da sociedade são
excluídas e impossibilitadas de acompanhar in loco jogos do esporte mais
popular do país.
A Copa da Repressão
Mais preocupante que a campanha
orquestrada para desqualificar os que criticam a Copa é o movimento orquestrado
pelo Estado brasileiro para expandir o aparato repressivo visando sufocar
protestos durante o megaevento – e muito provavelmente, depois. Este movimento
tem atuado em duas frentes: uma legislativa e outra ostensiva (policial e
militar).
O projeto de lei 728/2011, de
autoria do senador Marcelo Crivella (PRB), pretende tipificar o crime de
terrorismo no Brasil. Atualmente em trâmite no Senado, caso seja aprovado, este
projeto criará um subterfúgio jurídico para que tribunais possam enquadrar movimentos
sociais e manifestantes que supostamente promovam a ação direta como recurso
durante manifestações.
Já na frente ostensiva, o cenário
é ainda mais chocante. O governo federal já gastou quase 50 milhões de reais em
armamento menos letal, que inclui granadas de todos os tipos, armas de choque
elétrico e balas de borracha. Uma tropa de choque especial com 10 mil homens
também foi criada para atuar nacionalmente nas cidades-sede da Copa.
Em São Paulo, a Polícia Militar
avisou que vai adquirir caminhões que lançam jato d’água para conter
manifestantes. Trata-se dos mesmos caminhões que foram largamente usados para
reprimir manifestações populares na Turquia e no Chile.
Um batalhão especial, formado por
413 policiais militares, também foi criado pelo governo paulista com a função
de fazer o “controle de distúrbios civis e antiterrorismo”.
Mas assombroso mesmo é o manual
publicado pelo Ministério da Defesa em dezembro último, intitulado “Garantia da
Lei e da Ordem”, que atualiza orientações para a atuação das Forças Armadas no
país.
No texto, “movimentos ou
organizações” são classificados como “forças oponentes”, assim como qualquer
pessoa ou organização que esteja obstruindo vias de acesso, “provocando ou
instigando ações radicais e violentas”.
Na lista de principais ameaças
estão “bloqueios de vias públicas de circulação”, “depredação do patrimônio
público e privado”, “paralisação de atividades produtivas” e “invasão de
propriedades e instalações rurais ou urbanas, públicas ou privadas”.
As Forças Armadas devem estar nas
ruas durante a realização Copa do Mundo, assim como estiveram durante a Copa
das Confederações.
Que “Copa das Copas” é essa que
precisa do exército nas ruas para acontecer?
A Copa dos Protestos
Diante de tantas arbitrariedades,
violações de direitos humanos, processos de exclusão social, apropriação do
patrimônio público, entre outras várias mazelas, protestar contra a realização
da Copa da Fifa no Brasil não só é legítimo – é também um dever. Portanto, não
se deixe intimidar por discursos embevecidos por um patriotismo cego e
anacrônico ou ainda por artigos escritos por gente cujo verdadeiro compromisso
é com determinada agremiação política ou com o próprio bolso.
Enquanto políticos e articulistas
desqualificam, a atuação do aparato militar contra manifestações recrudesce,
fato que ficou claro no protesto do último dia 25 de janeiro, quando o
manifestante Fabrício Proteus foi baleado quase que mortalmente por policiais militares.
O episódio – bastante rotineiro nas periferias do Brasil, diga-se – se
configura como um eloquente alerta para futuras manifestações.
Mas nem a violência policial nem
o discurso da desqualificação devem nos impedir de desfrutarmos do direito constitucional
de protestar, sobretudo contra uma Copa imersa em podridão como a que se
avizinha.
Então, que em 2014 façamos das
ruas e avenidas das cidades a verdadeira arquibancada do país!
*O Comitê Popular da Copa de São
Paulo, criado em 2011, é um grupo de articulação contra os impactos e as
violações de direitos humanos da Copa do Mundo de 2014 em SP. Este texto foi
publicado originalmente no site do Comitê, onde mais informações podem ser
encontradas: comitepopularsp.wordpress.com/
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