Nova classe perigosa?
Ruy Braga
O livro de Guy
Standing, O precariado: a nova classe perigosa (São Paulo, Autêntica, 2013),
acabou de ser publicado no Brasil. Trata-se de uma dessas aguardadas análises
que chegou na hora certa. Um dos mais impactantes livros sobre o mundo do
trabalho lançado nas últimas décadas, ele já surgiu com ares de “clássico” por
ser capaz de traduzir em dados o espírito de toda uma época: vivemos sob a
sombra do “precariado”, isto é, um novo grupo de pessoas despojadas de
garantias trabalhistas, submetidas a rendimentos incertos e carentes de uma
identidade apoiada sobre o trabalho. Em larga medida, da qualidade da ação
coletiva deste grupo depende o futuro dos movimentos sociais globais.
A descrição que
Standing faz das razões pelas quais a globalização econômica por meio da
flexibilidade do trabalho ampliou incessantemente o tamanho do precariado é
verdadeiramente arrasadora. A mercantilização do trabalho associada tanto ao
aprofundamento da concorrência intercapitalista quanto à financeirização do
meio ambiente empresarial reviveu o pesadelo de Karl Polanyi. Como é sabido,
para o grande sociólogo húngaro, ao açambarcar as três mercadorias fictícias –
isto é, o dinheiro, o trabalho e a terra –, o capitalismo colocaria em risco o
conjunto da reprodução social.
Em seu belo volume,
Standing enfrentou os desafios levantados por Polanyi há exatos setenta anos.
Além de criticar a liberdade de movimentos e a concentração dos capitais
financeiros, ele denunciou os efeitos deletérios da submissão de parte
substantiva do movimento sindical europeu e de setores predominantes
domainstream político social-democrata a um modelo de desenvolvimento
socialmente irresponsável e ecologicamente insustentável. No entanto, seu foco
principal é o advento e o destino histórico do precariado como uma nova classe
em transformação.
Poderia passar muito
mais tempo simplesmente realçando os superlativos méritos do livro. No entanto,
estou entre aqueles que consideram que um estudo desta qualidade sempre
estimulará o desejo de discutir e de argumentar. Adianto que, ao contrário da
maior parte dos exemplos e dados presentes no livro cujo foco recai sobre as
relações trabalhistas em países de capitalismo avançado comentarei o livro da
perspectiva de alguém que estuda as metamorfoses do capitalismo e da classe
trabalhadora no chamado “Sul global”.
Talvez isto seja de
alguma valia ao debate. Afinal, em minha opinião, Standing concentra-se
excessivamente na ampliação do precariado em países de capitalismo avançado,
sobrando pouco espaço para a maior parte da força de trabalho mundial que se
encontra submetida a condições severamente piores de precariedade laboral do
que aquelas encontradas na Europa ocidental. De fato, uma parte significativa
das ameaçadoras relações sociais tão bem analisadas no livro parecem
incrivelmente familiares à sensibilidade daqueles que se especializaram em
pesquisar, por exemplo, a resiliência histórica do trabalho informal nas
economias do Sul global.
Por essa razão, dentre
as inúmeras possibilidades de interlocução com o livro, tentarei me concentrar
em apenas duas variáveis do precariado global, isto é suanatureza de classe e
seus padrões de mobilização coletiva. Standing compreende que o precariado não
faz parte da classe trabalhadora. Ao contrário, ele constituiria uma classe
social de novo tipo produto das transformações decorrentes da globalização
capitalista e das estratégias de flexibilização do trabalho em suas múltiplas
dimensões. De uma certa maneira, o precariado seria o filho indesejado do
casamento do neoliberalismo com a globalização do capital.
Esta união teria
engendrado uma nova classe formada basicamente por pessoas destituídas das
garantias sociais relativas ao vínculo empregatício, à segurança no emprego, à
segurança no trabalho, às formas de reprodução das qualificações, à segurança
da renda e à falta de representação política. Tudo aquilo que configurou a
robustez, na Europa e nos Estados Unidos, sobretudo, da cidadania salarial
fordista após a Segunda Guerra Mundial e que estaria sendo negado à geração dos
filhos dos babyboomers.
Em termos históricos,
Standing entende que o precariado afasta-se da classe trabalhadora, pelo fato
desta sugerir uma sociedade formada majoritariamente por:
“(…) Trabalhadores de
longo prazo, em empregos estáveis de horas fixas, com rotas de promoção
estabelecidas, sujeitos a acordos de sindicalização e coletivos, com cargos que
seus pais e mães teriam entendido, defrontando-se com empregadores locais cujos
nomes e características eles estavam familiarizados” (Standing, 2013: 22-23).
Em nossa opinião, esta
definição aproxima-se mais do conceito de “salariado” – criado pelos
economistas da Escola Francesa da Regulação e enriquecido por sociólogos críticos,
como o saudoso Robert Castel, por exemplo, para apreender o tipo de norma
social de consumo própria ao modelo de desenvolvimento fordista – do que do
clássico conceito de “proletariado” ou mesmo de “classe trabalhadora”. Nunca é
demais lembrar que, para Marx, em decorrência da mercantilização do trabalho,
do caráter capitalista da divisão do trabalho e da anarquia da reprodução do
capital, a precariedade é parte constitutiva da relação salarial.
Em termos marxistas, o
aprofundamento da precarização laboral em escala global apoia-se no aumento da
taxa de exploração da força de trabalho tendo em vista, sobretudo, a espoliação
dos direitos sociais associada à acumulação por desapossamento. Em todo caso,
não nos parece razoável falar em uma relação de produção de novo tipo capaz de
produzir uma “nova classe”. Antes, trata-se de um retrocesso em termos
civilizatórios potencializado pelo ciclo de acumulação desacelerada que se
arrasta desde, ao menos, meados dos anos 1970 e cujos desdobramentos,
potencializados pela crise atual, em termos da deterioração do padrão de vida
dos trabalhadores e assalariados médios tornaram-se mais salientes a partir de
2008.
Se, ao menos, na Europa
ocidental e nos Estados Unidos, décadas de institucionalização de direitos
sociais mitigaram a condição estruturalmente precária do trabalho assalariado,
integrando a fração masculina, branca, adulta, nacional e sindicalizada da
classe trabalhadora ao ciclo “virtuoso” da transferência de parte dos ganhos de
produtividade aos salários, a transformação de um longo período de crescimento
lento em uma crise econômica sistêmica trouxe novamente à baila a precariedade
laboral como um traço ineliminável damercantilização do trabalho.
Com isso, gostaria
apenas de dizer que a ausência de um sentido de carreira, de identidade
profissional segura e de direitos trabalhistas, são traços que, grosso modo,
sempre estiveram presentes na própria definição da força de trabalho fordista
no Brasil. E estas características continuam presentes nos dias de hoje. Apenas
para efeitos comparativos, entre 2003 e 2010, um período marcado por flagrante
crescimento econômico com formalização do emprego, a atual taxa de
informalidade do trabalho no Brasil ainda é de 44%. Vale lembrar que, no sul da
Europa, mesmo após cinco anos de forte crise econômica, esta taxa gravita em
torno de 20%.
Uma mirada na formação
do precariado europeu de uma perspectiva brasileira talvez também seja útil
para problematizar aquela que constitui a grande contribuição de Standing ao
debate público contemporâneo: o alerta sobre a natureza “perigosa”, isto é,
filo-fascista, desta nova classe. De fato, o autor constrói ao longo do livro
uma imagem do precariado como sendo uma classe alienada, ansiosa, insegura,
infantilizada, oportunista, cínica, passiva – tanto mental, como politicamente
–, além de detentora de um estado psíquico nebuloso. Não é de se estranhar,
portanto, que, do ponto de vista político, o precariado seja considerado
potencialmente hostil ao regime democrático, além de uma presa fácil dos apelos
direitistas.
Gostaria de me deter
sobre este ponto, qual seja, a “política do precariado”, por um momento. Se,
por um lado, Standing nitidamente acerta ao destacar os jovens recém-chegados
ao mercado de trabalho, especialmente, os estagiários e os operadores de
telemarketing, como o grupo mais representativo entre os que irão desenvolver
uma trajetória ocupacional frustrante e apartada daquela bem mais estável
verificada por seus pais, por outro, sua caracterização a respeito da relação destes
jovens com os sindicatos merece um olhar mais detido. Em suma, o autor
identificou uma postura ressentida e anti-sindical por parte significativa do
precariado.
Devido, sobretudo, ao
fato de que os trabalhadores jovens e politicamente inexperientes, cada dia
mais submetidos a empregos temporários, considerarem impossível formar
associações coletivas no processo de produção seria a razão da saliente
hostilidade em relação ao movimento sindical. Afinal, o precariado associaria
os sindicatos aos “privilégios” reservados aos assalariados mais velhos e que
ainda desfrutam da proteção de um tipo de compromisso social em flagrante
desintegração.
Para Standing, fazer
frente ao enorme desafio social representado pelo crescimento ininterrupto
desta classe alienada em vias de se deixar seduzir por apelos populistas e
iniciativas autoritárias implica substituir a agenda sindical por uma nova
agenda de segurança econômica e de mobilidade social apoiada sobre uma reforma
das políticas públicas. Como os sindicatos tenderiam a se enfraquecer a cada
dia e, consequentemente, tombar sobre seu próprio egoísmo burocrático, eles,
supostamente, não poderiam construir soluções políticas capazes de fortalecer a
universalização dos direitos sociais necessária para fazer frente ao
crescimento do precariado.
O fato curioso é que,
em 2004, quando iniciei minha pesquisa de campo a respeito dos operadores de
telemarketing em São Paulo, eu próprio sustentava expectativas bastante
semelhantes no tocante à consciência sindical destes jovens trabalhadores. E
como poderia ser diferente se, neste setor, prevaleciam os baixos salários, os
contratos temporários, a alta rotatividade, a hostilidade aos sindicatos, a
inexperiência política e os desejos individualistas de consumo? Conforme a
pesquisa evoluiu, no entanto, fui me dando conta de que uma realidade
acentuadamente diferente, senão, totalmente contrária, prevalecia neste setor.
O que aconteceria se,
aos olhos dos jovens trabalhadores precarizados, ao invés de representar os
privilégios inalcançáveis da geração anterior, os sindicatos anunciassem a
possibilidade de acender aos direitos sociais que foram negados a seus pais?
Foi exatamente essa a realidade que encontrei ao estudar a relação dos
operadores de telemarketing da indústria paulistana do call center com o
movimento sindical que atua no setor. E, nos últimos 15 anos, os sindicatos têm
se empenhado em atualizar suas táticas a fim de se aproximarem da massa de
trabalhadores jovens que todos os anos acorre às empresas do setor.
Além disso, os próprios
teleoperadores, apesar de sua inexperiência política, aproximam-se fatalmente
dos sindicatos em busca de apoio a suas reivindicações trabalhistas. E como
poderia ser diferente se, no setor, tende a imperar a dura realidade dos baixos
salários, da alta rotatividade, do adoecimento, do assédio moral, etc.? O
aprofundamento da experiência com o regime de trabalho despótico da indústria
do call center tende a promover não apenas comportamentos críticos em relação
às empresas, como também o desenvolvimento de formas embrionárias de
consciência de classe que são potencializadas pelos sindicatos. O resultado
desta aproximação entre os teleoperadores e o sindicalismo pode ser medido, por
exemplo, pelo aumento da participação destes trabalhadores nas greves nacionais
bancárias dos últimos anos.
Um contra-argumento
legítimo seria invocar a excepcionalidade do caso brasileiro a fim de mitigar a
força deste exemplo. Afinal, há dez anos o país é governado pelo Partido dos
Trabalhadores e a crise internacional não teria atingido o país como o fez na
Europa. E, mesmo com uma taxa de crescimento abaixo da média dos anos 2000, a
estrutura social do Brasil continua a criar milhões de empregos formais todos
os anos. Exatamente por isso, gostaríamos de invocar outro estudo de caso para
pensarmos a suposta incompatibilidade política identificada por Standing entre
o precariado e o movimento sindical, isto é, o caso de Portugal.
Trata-se de um exemplo
emblemático do crescimento do precariado motivado pela crise econômica mundial.
Desde 2008, a taxa de desemprego aumenta no país e as relações trabalhistas
estão sendo submetidas a condições cada vez mais precárias. O desemprego e o
subemprego atingem mais da metade da população economicamente ativa entre os 15
e os 35 anos. Para os jovens, praticamente não há perspectivas de contratação
que não seja por meio de vínculos intermitentes. A massa salarial diminuiu e o
Estado avança nos cortes de gastos e nas demissões motivadas pela adoção das
medidas de austeridade acertadas com a Troika (isto é, a Comissão Europeia, o
Banco Central Europeu e o Fundo Monetário Internacional).
Pois bem, qual tem sido
a reação dos jovens trabalhadores precarizados portugueses frente ao assalto a
seus direitos sociais? Desde 2011, eles investem em massivas manifestações de
protesto contra as medidas do governo de Pedro Passos Coelho. As maiores foram,
sem dúvidas, organizadas pelo movimento “Que se lixe a troika! Queremos as
nossas vidas!” e ocorreram nos dias 15 de setembro de 2012 e 2 de março de
2013, acantonando mais de 1 milhão de pessoas cada nas principais cidades do
país. Animado por cerca de uma dezena de associações de trabalhadores precarizados,
como os “Precários Inflexíveis”, por exemplo, desde o início o movimento “Que
se lixe a troika!” convidou os sindicatos e, mais precisamente, a Central Geral
dos Trabalhadores Portugueses (CGTP), a integrarem os protestos.
A resposta do movimento
sindical foi bastante positiva: além de participarem das marchas, os sindicatos
convocaram greves gerais, reforçando as demandas contra a precarização do
trabalho em suas campanhas. Ao contrário de uma hostilidade dos jovens em
relação aos sindicatos, percebe-se uma relação tensa, porém, marcadamente
solidária, em termos políticos. Na realidade, os jovens mobilizam-se para
defender os direitos sociais conquistados por seus pais e vêem os sindicatos
como aliados e não como adversários de sua luta.
Existem inúmeras
diferenças entre os casos brasileiro e português. Os jovens trabalhadores no
Brasil, por exemplo, lutam por efetivar direitos enquanto os portugueses
mobilizam-se para conservar direitos sociais. Além disso, há muitas diferenças
em termos de composição social e qualificação do trabalho separando estes
jovens. Uns olham para o futuro com um certo otimismo, enquanto outros vivem o
pesadelo de não enxergar futuro algum. No entanto, em ambos os casos, não há
evidentemente hostilidade ao regime democrático. Muito ao contrário, a práxis
política desses grupos é marcadamente progressista.
Finalmente, diríamos
que o livro de Guy Standing é uma obra fascinante não apenas pelas questões que
ilumina, mas, sobretudo, pelas polêmicas que é capaz de nutrir. A discussão
sobre se o precariado é ou não uma “nova classe” apartada do proletariado e com
interesses contrários ao movimento sindical é uma destas questões polêmicas que
merece ser debatida. Afinal, estamos convencidos de que é da qualidade da ação
coletiva deste jovem precariado global que depende o futuro dos movimentos
sociais.
19 de fevereiro de 2014