Sáb,
08 de Fevereiro de 2014 11:25 Carta Capital
Ao
onerar mais o consumo que a renda e a propriedade, o sistema tributário
brasileiro pune os mais pobres e alivia a carga do topo da pirâmide social.
por
Samantha Maia
Daqui
a mais ou menos seis meses, encerrada a Copa do Mundo, o Brasil mergulhará em
uma nova campanha presidencial. Ainda não se sabe qual tema "novo"
dominará os debates. Em 2010, o aborto consumiu um tempo precioso dos
candidatos e, pior, esgotou a paciência do eleitorado, em desfavor de assuntos
mais pertinentes. A "velha" agenda é, porém, fartamente conhecida.
Tanto a candidata à reeleição, Dilma Rousseff, quanto os seus prováveis
adversários, Aécio Neves e Eduardo Campos, vão prometer, antes de o galo cantar
três vezes, uma série de reformas para melhorar a vida dos cidadãos. Entre elas
não faltarão as propostas de reformulação do sistema tributário.
A
mudança nos tributos é uma pauta antiga dos empresários e da chamada classe
média. A carga de impostos de 36% do Produto Interno Bruto está bem acima da
média dos países de economia semelhante à brasileira. O sistema é burocrático,
confuso, pune quem deseja produzir, encarece os produtos nas gôndolas e não
estimula a inovação. Em resumo, é anticompetitivo e atrasado. Segundo a
consultoria Deloitte, as empresas de pequeno porte gastam 3,53% do seu
faturamento somente para cuidar da complexa administração dos tributos.
Dito
isso, o debate sobre o assunto tem servido muito mais a mistificações do que ao
esclarecimento das ideias, embora não faltem informações a respeito
(especialistas de distintas filiações ideológicas e diferentes nações
produziram nos últimos anos diagnósticos interessantes sobre os impostos
brasileiros). Os dados, em boa medida, contradizem as versões dominantes sobre
onde realmente se localizam as distorções.
Um
problema central, apontam os estudos, está no fato de a estrutura brasileira
ser um fator determiante para o aprofundamento das diferenças regionais e da
desigualdade social. O sistema onera fortemente o consumo e pouco a renda. Os
tributos sobre o patrimônio, raramente lembrados nas discussões, são metade do
cobrado nas nações desenvolvidas, segundo dados da insuspeita Organização de
Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), clube dos países ricos. Na outra
ponta, os impostos recolhidos em mercadorias e serviços alcançam 45% da carga
total, um peso insuportável para quem se propõe a produzir. "Quanto menor
o nível de renda de uma família, maior a destinação ao consumo.e maior a exposição
à tributação mais alta.
Essa
é a origem básica da regressividade", resume a diretora da Fundação
Instituto de Pesquisas Econômicas, Maria Helena Zockun. A palavra
regressividade significa que quem grita menos, a imensa maioria desinformada, é
uma espécie de Atlas mitológico: carrega nas costas u m modelo iníquo e
vilipendiado pela sonegação dos espertos e as manobras contábeis urdidas por
advogados bem remunerados.
Os
cidadãos que mais reclamam em geral são menos molestados pelo famoso Leão. O
quadro à página ao lado é ilustrativo.
Enquanto
um trabalhador que recebe salário mínimo deixa, ao consumir, 37% de sua renda
nos cofres do governo, quem aufere 22 mil mensais desembolsa apenas 17%, de
acordo com o seu padrão de gastos.
Nem
se fale da porção superior da pirâmide social, o nosso 1%. O Brasil, em
comparação à maioria dos países e em especial às nações desenvolvidas, além de
tributar mal o patrimônio, como já exposto, também cobra poucos impostos sobre
a renda e praticamente nada quando se trata da transmissão de herança. A maior
alíquota do Imposto de Renda é de 27,5%, ante 55,9% nos Estados Unidos, para
citar a meca do livre-mercado. Mesmo assim, trata-se de um dado meramente
estatístico: ninguém paga 27,5% de IR. Com os descontos por faixa de renda
válidos a todos os contribuintes e as deduções permitidas (os gastos com
escola, saúde e previdência privada podem ser em parte descontados), um
indivíduo com salário de 22 mil por mês consegue derrubar a alíquota total
sobre os seus ganhos para 17%. Na média, o porcentual efetivo no Brasil não
ultrapassa 10% da renda.
Outro
comparativo da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe expõe o
resultado dessa distorção. Por si só, o sistema brasileiro, entre a arrecadação
e a distribuição dos recursos, reduz em meros 3,6% a desigualdade de renda, um
pouco abaixo da média medíocre da América Latina (3,8%), subcontinente campeão
das disparidades sociais. Entre 15 países da União Europeia, o Fisco é
responsável por uma redistribuição média de 32,6%. Na Dinamarca, o índice
alcança 40,8%.
Alguém
dirá: o Estado não oferece serviços à altura dos impostos pagos anualmente pela
sociedade. E fato, em parte. A saída estaria, portanto, em uma redução radical
da carga tributária, certo? Não, diz o economista José Roberto Afonso,
pesquisador do Ibre. "O desafio não é reduzir a carga, mas melhorar a sua
qualidade, com a diminuição dos impostos indiretos, perversos, e o aumento dos
diretos, mais justos."
Nos
últimos anos, Afonso tem se dedicado ao tema dos impostos e produz estudos
fundamentais para entender as iniquidades e ineficiências do sistema no Brasil.
Antes que algum liberal o acuse de sofrer a doença "do estatismo ou do
comunismo", seria bom lembrar sua trajetória. O economista é
historicamente ligado ao PSDB e, em especial, ao
ex-tudo-menos-aquilo-que-ele-realmente-gostaria-de-ser José Serra.
Afonso
faz uma ressalva ao impostômetro, o festejado medidor da Associação Comercial
de São Paulo que atualiza a cada segundo o total de tributos pagos no País.
Segundo ele, o valor global pouco explica a estrutura perversa das cobranças. O
1,7 trilhão de reais indicado no painel como o total no ano passado esconde uma
informação reveladora: quem recebe acima de 30 salários mínimos precisou
trabalhar três meses a menos para pagar o seu quinhão do que um cidadão da base
da pirâmide social. "Ninguém está incomodado, pois os mais prejudicados
não têm voz, e os outros ficam quietos. O debate não ganhou densidade, é um
tema árido, os mais pobres nem percebem que pagam imposto, e fica por isso
mesmo", diz Zockun.
QUEM
GANHA ACIMA DE 30 SALÁRIOS PRECISA TRABALHAR TRÊS MESES A MENOS NO ANO PARA
PAGAR TRIBUTOS DO QUE QUEM VIVE COM O MÍNIMO
Embutidos
nos preços, os impostos indiretos (ICMS, ISS,IPI,PIS e Cofins) passam
praticamente despercebidos, apesar de seu enorme peso na arrecadação. A soma
das alíquotas é, em média, de 68%, ante 16% na média do máximo taxado em 31
países que adotam tributos semelhantes, segundo levantamento da Fipe. Desde
junho de 2013, uma lei exige a decomposição, na nota fiscal, dos impostos, uma
forma de o comprador ter a exata noção de quanto paga ao adquirir um produto ou
serviço. Os comerciantes reclamam, porém, da dificuldade em fazer o
detalhamento, dada a complexidade do sistema tributário.
"Saber
o quanto se paga na aquisição de um bem poderia provocar uma pressão da
sociedade por uma reforma tributária, mas não há solução fácil", diz
Clemente Ganz Lúcio, diretor do Dieese. Um primeiro passo, diz Zockun, teria
sido aprovar, no Senado, uma proposta de 2008 que previa o estabelecimento de
um imposto único nacional sobre valor agregado, aos moldes do IVA europeu.
"O projeto não avançava sobre a regressividade, mas, ao simplificar o
sistema e mostrar o imposto nas notas fiscais, surgiria alguma reação de baixo",
acredita a pesquisadora. A ideia não avançou pela pressão dos governadores,
contrários a reduzir o ICMS, a principal fonte de arrecadação das
administrações estaduais. As alíquotas de ICMS são particularmente altas em
serviços essenciais: luz elétrica e telecomunicações.
O
ISS também tem ganho importância nos orçamentos municipais, em mais um
movimento de aumento da desigualdade, ao encarecer tarifas de ônibus,
cabeleireiros e oficinas mecânicas. Enquanto isso, o IPTU, o imposto sobre
propriedades urbanas que pode ter alíquotas diferenciadas por faixa de renda,
perdeu participação na arrecadação. Em 93% das cidades, o valor recolhido com o
imposto fica abaixo do IPVA, cobrado dos veículos. Pior: segundo o Instituto de
Pesquisa Econômica Aplicada, as falhas no sistema de avaliação do valor do
imóvel tornaram o IPTU regressivo, ou seja, proprietários de imóveis mais caros
pagam proporcionalmente menos imposto. "O IPTU é um imposto mais justo,
mas tem uma alta rejeição por falta de conhecimento de quem paga, de quem não
paga e, principalmente, por não haver transparência dos governos em relação à
aplicação dos recursos", diz Afonso.
São
Paulo é o principal campo dessa guerra. O prefeito petista Fernando Haddad foi
proibido pela Justiça de aumentar o IPTU. Antes da interferência do Judiciário,
Haddad havia, porém, perdido a batalha da comunicação: até aqueles que
desembolsariam menos e os isentos da taxa se declararam contra as mudanças na
cobrança.
O
caso brasileiro de tributar pouco a propriedade é peculiar, afirma Afonso.
"Nos EUA, existe um sistema de educação vinculado ao pagamento do IPTU e é
comum uma família escolher morarem um distrito por conta da escola pública. E o
tipo de lição para a qual o Brasil deveria olhar."
Na
mesma linha, o País quase não arrecada de propriedades rurais. A arrecadação do
ITR corresponde a 0,01% do PI B e, provavelmente, mal cobre os custos de seu
lançamento. A falha, diz o economista Ladislau Dowbor, estimula a concentração
e a improdutividade. "Não temos retorno dos grandes investimentos em
terra. E possível ficar sem produzir, pois ela não custa ao proprietário."
O
imposto sobre herança também é irrisório. Em meio a tantos discursos infiados
em defesa da meritocracia, o Brasil permite a herdeiros usufruir, sem a
necessidade de algum esforço próprio, com as riquezas construídas pelos pais.
Nos Estados Unidos, a doação de fortunas para fundações é estimulada pelo fato
de a transferência da herança ser tributada em até 50%. No Brasil, a alíquota
mais alta é de 8%. "Claro que existe uma margem de isenção, mas ninguém
acusa os Estados Unidos de serem contra a propriedade por tributar dessa
forma", diz Claudio Hamilton dos Santos, diretor do Ipea.
A
AVALIAÇÃO FALHA DO VALOR DOS IMÓVEIS PERMITE AOS PROPRIETÁRIOS PAGAR CADA VEZ
MENOS TRIBUTOS
A
tributação sobre a renda representa apenas 19% da carga brasileira. O
Sindifisco encabeça uma campanha pelo reajuste da tabela do IR, cuja defasagem
é de 66% e leva os salários mais baixos a pagarem cada vez mais. Outros grupos
defendem a inclusão de alíquotas maiores para chegar a patamares mais elevados
de ganhos, além da taxação de grandes fortunas. Mas a pouca representatividade
do IR no total da carga, avalia Zockun, em nada seria afetado se mantidas as
permissões para descontos. "A tributação direta acaba pequena para
qualquer nível de renda, pois as deduções fazem com que a tributação efetiva
seja muito menor."
Para
alcançar as camadas mais altas de renda, explica Afonso, o foco precisa sair do
imposto sobre pessoa física e ir para a jurídica, onde existe uma alíquota
geral de 15%. Como forma de reduzir o custo do trabalho, o Brasil estimulou
certas categorias profissionais e funcionários de altos salários das empresas a
se tornarem "empresas". Por extensão, permitiu-se a muitos deles
ingressar no Simples, um sistema de recolhimento que reduz o porcentual de
pagamento. "O aumento das alíquotas sobre pessoas físicas vai atingir
apenas o funcionalismo público, não os profissionais liberais, jogadores de
futebol, artistas." E por que é tão difícil mudar? "Sabemos onde
mexer, mas o financiamento da política por parte de quem quer manter o sistema
como está trava a discussão", diz Dowbor.
Sem
grandes esforços para mexer nos impostos, a distribuição de renda recente foi
obtida, segundo o Ipea, a partir do aumento dos gastos sociais, a exemplo do
Bolsa Família. "O governo federal conseguiu efeitos distributivos por meio
dos gastos, não dos tributos. Há o risco de o discurso anti-imposto se voltar
contra os ganhos dos investimentos, o que representaria um dano ainda
maior", diz Fernando Gaiger, pesquisador do instituto.
Além
de ser o grupo que deixa a maior parte dos seus rendimentos com o Leão, a
população de baixa renda é aquela que tem mais a perder na hipótese de redução
dos impostos. Segundo o Ipea, em uma carga tributária de 36% do PIB, 15 pontos
porcentuais são redistribuídos à população por meio de serviços públicos.
"Se quisermos uma educação melhor, vamos precisar de mais professores, e a
verdade é que ainda faltam recursos para investir. Os serviços são mais baratos
quando coletivos, mas, se a elite consegue fazer seu mundo à parte, ela não se
preocupa com isso", diz Dowbor.
Há
um claro limite para a expansão dos efeitos de distribuição de renda via
aumento de gastos. Se quiser um dia se tornar um país mais justo, o Brasil terá
de inverter a lógica: cobrar de quem, de fato, pode custear o esforço rumo à
civilização. Seria uma revolução.
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