Por Gustavo Henrique Lopes
Machado
Neste mês de novembro
completa-se 25 anos da queda do muro de Berlim, prelúdio imediato do
desmoronamento do mundo soviético. No segundo semestre de 1989 na Polônia,
Checoslováquia, Hungria, Romênia, Bulgária e na República Democrática Alemã o
poder do partido comunista abdicou sem que fosse necessário uma só batalha, uma
só resistência séria por parte do Partido Comunista da União Soviética (PCUS) e
mesmo, exceto a execução de Nicolau Ceausescu na Romênia, sem que fosse
necessário um só disparo. A União Soviética, enfraquecida, dissolvera-se algum
tempo depois sob o comando de Boris Yeltsin. Um evento histórico desta
magnitude ocorreu sem qualquer guerra civil ou resistência armada por parte dos
membros do antigo poder e, não por acaso, é considerado um dos eventos mais
enigmáticos da histórica contemporânea, mesmo entre os marxistas.
Sabemos que a União
Soviética influenciava o conjunto das organizações comunistas espalhadas pelo
globo e aparecia como um referencial central para maioria daqueles que vislumbravam
alternativas para além do capital. Apesar de ser alvo de severa crítica entre
alguns agrupamentos de esquerda, poucos foram os que não se viram órfãos após
sua derrocada. Neste caminho, diversos teóricos marxistas decretaram o fracasso
da alternativa aberta em outubro de 1917. Outros propagandeavam o fim do
proletariado e o nascimento de um novo tipo de capitalismo, cujo conteúdo e
fundamentos ainda se encontravam por desvelar. Muitos anunciavam a necessidade
de reinventar o socialismo. Nesta direção seguiu, por exemplo, a maioria dos
integrantes do Partido Comunista Brasileiro, ao dissolver a organização em
1991, dando origem ao Partido Popular Socialista.
Os ideólogos liberais e
conservadores logo se apressaram em afirmar que tal acontecimento representava
o triunfo definitivo do capitalismo sobre o socialismo, da economia de mercado
sobre o planejamento econômico, em suma, a vitória definitiva e acachapante do
capital. O conhecido artigo de Francis Fukuyama, O Fim da História,
fundamentado em uma certa interpretação de Hegel, foi premeditadamente
utilizado como um veículo de propaganda a respeito desta tese: o capital, com
seu respectivo Estado, assentado igualdade jurídica do conjunto dos cidadãos,
expressava o ponto final da história, cujo curso racional conduziu a humanidade
à autoconsciência de sua liberdade. Neste caminho, a Revolução Francesa e o
império napoleônico expressavam o último episódio violento da odisseia
histórica rumo a igualdade e liberdade. Esta hipótese teve grande impacto nas elaborações
subsequentes, como pressuposto implícito das diversas abordagens pós-modernas,
que pressupondo uma objetividade sem devir, um todo capitalista insuperável e
definitivo, tenderam para a fragmentação aleatória do conhecimento, para o
abandono de qualquer perspectiva histórica totalizante e, sobretudo, a
supressão de qualquer perspectiva teórica orientada ao futuro.
Seja como for, a
hipótese do fim da história não explica como a insuperável economia de mercado
com seu respectivo estado democrático de direito produziu no seu interior
tantos movimentos de contestação, inclusive, o próprio estado soviético que
acabara de ruir. Não explica como esta mesma economia de mercado, que nas suas
insuficiências e contradições, propiciou o século mais revolucionário da
história humana. Nos dias de hoje, tal tese se enfraquece ainda mais à luz das
recentes crises e colapsos econômicos desenrolados no coração financeiro do
capital: Estados Unidos e a Europa.. Ao mesmo tempo, um quadro geral de
instabilidade, insegurança, incerteza e desilusão assombram o conjunto da
humanidade. Neste sentido, na contramão das abordagens pós-modernas, uma velha
missão hoje retorna: pensar o futuro, eis a tarefa. E para pensar o futuro é
sempre necessário retornar ao passado e, em particular, ao evento que, para
muitos, abriu uma nova era: o colapso do mundo soviético, que seria, ao mesmo
tempo, o colapso do próprio marxismo com a perspectiva de futuro que por mais
de um século este alimentou.
Como se sabe, a
particularidade do marxismo no interior do movimento socialista no século
XIX consistia na aposta de que para
destruir o capital, em sua universalidade manifesta através do mercado mundial,
faz-se necessário um sujeito social dotado de igual universalidade, cujos
interesses particulares o possibilitem se elevar à universalidade da revolução
socialista, para além das especificidades regionais ou nacionais: este sujeito
é a classe trabalhadora. Antes de uma profecia, esta premissa se assenta em uma
necessidade objetiva. Sem um sujeito universal não é possível dar cabo no
capital, cujos tentáculos se estendem cada vez mais por todo globo, em extensão
e profundidade. A possibilidade de um país socialista isolado, envolto pelo
mercado capitalista mundial, com o qual precisa se relacionar econômico e
politicamente, somente poderia se admitir por um curto período de tempo e, para
as primeiras gerações de marxistas, neste cenário, unicamente duas saídas eram
concebíveis: revolução mundial ou restauração capitalista.
A sobrevivência da revolução
russa após a guerra civil, em frangalhos é verdade, e sua posterior
burocratização, levantou inelutavelmente a questão: exceto por uma intervenção
externa, quem seria o agente interno que possibilitaria a restauração
capitalista na União Soviética? Por não possuir uma classe capitalista, uma
classe de proprietários privados, muitos julgaram que tal restauração seria
impossível. Países capitalistas e socialistas poderiam conviver lado a lado por
um tempo indeterminado. Estava dada as bases da teoria do socialismo em um só
país.
Entretanto, na
contramão desta concepção e reafirmando os princípios da teoria marxista
clássica, Leon Trotsky dirá em meados da década de 1930 que
“a coação exercida
pelas massas no Estado operário[URSS] é diretamente proporcional às forças que
tendem para a exploração ou para o perigo da restauração capitalista” (TROTSKY,
2005, p. 120), diz ainda que “ninguém negou nunca a possibilidade [na URSS]
[...] da restauração de uma nova classe proprietária originária da burocracia. A
atual posição da burocracia, de que por meio do Estado, tem “em certa medida”
as forças produtivas nas suas mãos, constitui um ponto de partida de extrema
importância para um processo de transformação. Trata-se, no entanto, de uma
possibilidade histórica e não de algo já realizado” (TROTSKY, 1986, p.
218-219).
Como se vê, para
Trotsky, a restauração capitalista no interior da URSS era não apenas possível,
como uma tendência inexorável que apenas poderia ser freada definitivamente
pela revolução internacional. E mais ainda, seria a própria burocracia, na
exata medida que se defrontassem com seus privilégios ameaçados, o germe da
nova classe proprietária.
No mesmo sentido, mas
de maneira mais determinada, Nahuel Moreno, reafirmando a possibilidade da
restauração capitalista, diz em 1979 que a
“burguesia
restauracionista não será a velha burguesia, mas a ampla maioria dos
tecnocratas, a burocracia, a aristocracia operária e camponesa. Estes setores
aspirantes a burgueses defenderão, muito possivelmente, que as fábricas deixem
de ser do ‘Estado totalitário e que passem para as mãos dos operários’ como
propriedade de cooperativas de trabalhadores” (grifo nosso) (MORENO, 2007,
p.112).
Ora, nos dias de hoje,
sabemos à quem o processo histórico deu razão. Pressionada pelo baixo
crescimento econômico da era Brejnev, a burocracia soviética através de Mikhail
Gorbachev instituiu, em 1986, a perestroika que visava a abertura econômica e a
conformação de um suposto socialismo de mercado. Neste curso, foi aprovada em 1987
a lei que permitiu investimentos estrangeiros na União Soviética através de
empresas mistas e, finalmente, em 1988, a propriedade privada foi oficialmente
restaurada sob a forma de cooperativas no interior da indústria, nos serviços e
em sectores de comércio exterior. O previsível colapso econômico que se seguiu
possibilitou aos burocratas do PCUS, finalmente, se apropriarem em definitivo
dos meios de produção soviéticos. O prognóstico de Nahuel Moreno se mostrou
profético.
A emergência de uma
nova classe de proprietários oriunda da antiga burocracia do PCUS é hoje
atestada por farta documentação e pela totalidade da historiografia que se
enveredou pelo tema. Por exemplo, Eric Hobsbawn nos diz que os burocratas,
“após o fim do comunismo, tomaram-se os donos (potencialmente) legais das
empresas que haviam comandado antes sem direitos legais de propriedade”
(HOBSBAWN, 1994, p.469). O jornal Moscow Times, órgão da embaixada
norte-americana em Moscou, anunciou em 1994:
“Quase da noite para o
dia, os patrões do Partido e os diretores das fábricas e fazendas estatais
tornaram-se os reais controladores de seu próprio destino – e também o destino
dos trabalhadores. Estavam agora livres para fixarem os próprios salários, para
se apoderarem dos apartamentos e automóveis entregues a eles, e para utilizarem
a propriedade, o equipamento e a força de trabalho, no propósito de fazer
dinheiro do modo que desejavam” (grifo nosso) (BROUÉ, 1996, 187).
No mesmo sentido, o
historiador francês Marc Ferro, imune a qualquer acusação de trotskismo, diz
que
“uma vez instaurada a
privatização, cada qual recebeu um cupom, mas muitos tiveram que passá-los
adiante a fim de saldar as despesas cotidianas. Os membros da nomenklatura mais
bem posicionados adquiriram tais cupons por uma ninharia, e então o reinado da
Cleptocracia teve início, caracterizado pelas privatizações feitas de modo
selvagem; o petróleo, o gás, os minerais passaram para as mãos de alguns poucos
poderosos, e o banditismo se impôs nos meios bancários” (FERRO, 2009, p.79-80).
O socialismo em um só
país mostrou-se, como já prognosticara Marx e toda tradição dele decorrente,
como insustentável. Grande parte da burocracia se encontrava, agora, livre da
mediação do Partido e do Estado para apropriação privada da riqueza produzida
pela classe trabalhadora russa. De uma perspectiva marxista, se alguma questão
nos resta a ser respondida, não é o por que do colapso da União Soviétiva, mas
por que ela durou tanto tempo.
Para concluir, mencionamos
uma anedota interessante para os nossos propósitos. Em 1946, conforme nos narra
o historiador Jean Jacques-Marie, o comandante das Forças Armadas Soviéticas
durante a Segunda Guerra Mundial, Jukov, após um breve período de glória, caíra
em desgraça diante de Stálin. Dentre os elementos usados contra o comandante da
Batalha de Stalingrado se encontravam diversos objetos de luxo por ele roubados
da Alemanha ocupada ao final da segunda guerra mundial. Interrogado, Jukov
respondera em tom de lamentação que não possuía nada, que até seus troféus de
guerra eram propriedade do Estado. Como se vê, os burocratas russos ainda
teriam que esperar mais de quatro décadas para realizarem seu sonho. Em
1989-1991 o socialismo em um só país encontrou o seu autêntico caminho e sua
antiga casta dirigente atingiu, finalmente, a libertação. Ao mesmo tempo, se
consumou a derrota dos trabalhadores russos que em 1917 mostraram um novo
caminho para a humanidade. O Espírito Absoluto se reconciliou consigo mesmo e a
histórica chegou ao seu fim. Pelo menos, por enquanto…
Referências
bibliográficas
BROUÉ, Pierre. União
Soviética: da revolução ao colapso. Porto Alegre: EdUFRGS, 1996.
HOBSBAWM, Eric. Era dos
Extremos. São Paulo, Cia das Letras, 1994.
FERRO, Marc. A
Reviravolta da História: a Queda do Muro de Berlim e o Fim do Comunismo. São
Paulo: Paz e Terra, 2009.
MARIE, Jean-Jacques.
Stalin, São Paulo, Babel, 2011.
MORENO, Nahuel. A
Ditadura Revolucionária do Proletariado. São Paulo: José Luís e Rosa
Sundermann, 2007.
TROTSKY, Leon. A
revolução traída: o que é e para onde vai a URSS. São Paulo: José Luís e Rosa
Sundermann, 2005.
TROTSKY, Leon. Em
defesa do marxismo. São Paulo: Proposta, 1986.
Postado inicialmente: In
http://blogconvergencia.org
Coletivo Opinião Bancária - contatos: coletivoopiniaobancaria@gmail.com
Nenhum comentário:
Postar um comentário