Para
sociólogo, movimento reúne duas marcas contemporâneas e transformadoras:
atitude libertária e pauta tóxica… para o capitalismo
Por
Michael Löwy, Mediapart | Tradução Caipora (MPL-Rio)
In:
Outras Palavras
A
luta do Movimento Passe Livre (MPL) – movimento pelo transporte público
gratuito – contra o aumento dos preços das passagens foi a que desencadeou a
ampla e impressionante mobilização popular no Brasil no último mês de junho,
que levou às ruas centenas de milhares, quando não milhões, de pessoas nas
principais cidades do país. O MPL foi uma pequena faísca libertária que
provocou o incêndio. Quais lições podem ser tiradas desta experiência e qual é
o alcance social, ecológico e político da luta pelo transporte gratuito?
O
MPL foi fundado em janeiro de 2005, por ocasião do Fórum Social Mundial de
Porto Alegre, como uma rede federativa de coletivos locais. Estes coletivos já
existiam há vários anos e levaram a cabo importantes lutas como a de Salvador
(BA) em 2003, contra o aumento das passagens de ônibus. A carta de princípios
do MPL (revisada e completa em 2007 e 2013) o define como um “movimento
horizontal, autônomo, independente e apartidário, mas não antipartidário”.
A
horizontalidade é, sem dúvida, a expressão de um projeto libertário que
desconfia das estruturas e instituições “verticais” e “centralizadas”. A
autonomia em relação aos partidos significa a negação em ser instrumentalizado
por estes últimos, mas o movimento não recusa a colaboração e a ação comum com
as organizações políticas, em particular as da esquerda radical. Atua em
conjunto também com associações de bairros populares, com movimentos pelo
direito à moradia, com as redes de luta pela saúde e com certos sindicatos
(trabalhadores do metrô, professores). Enxerga no transporte gratuito não um
fim, mas um “meio para a construção de uma sociedade diferente”. Pequena, a
rede nunca superou algumas centenas de militantes, advindos primeiro das
instituições de ensino e mais tarde dos bairros populares. De sensibilidade
anticapitalista libertária, os ativistas têm diferentes origens políticas:
trotskystas, anarquistas, altermundialistas, neozapatistas; com um toque de
humor, alguns se definem “anarco-marxistas punk”. Em novembro de 2013 realizou,
pela primeira vez, uma Conferência Nacional em Brasília – graças ao apoio
financeiro da filial brasileira da Fundação Rosa Luxemburgo – com a
participação de 150 delegados, que representaram 14 coletivos locais. Foram
adotadas, através de consenso, algumas resoluções e formou-se um grupo de
trabalho, composto por representantes dos coletivos, que coordenará as
iniciativas, respeitando a autonomia e a “horizontalidade”. (Obtivemos estas
informações em duas reuniões com militantes do MPL em São Paulo, Brasil, em
novembro de 2013).
O
método de luta do MPL é também de inspiração libertária: a ação direta nas
ruas, geralmente lúdica e ousada, mais do que a “negociação” ou o “diálogo” com
as autoridades. Os militantes não cultuam nem a violência, nem a não violência;
uma de suas ações típicas é bloquear as ruas, ao som de grupos musicais,
colocando fogo em pneus e “catracas”. Este termo, intraduzível, significa no
Brasil um torno metálico giratório, bem firme, que fica em todos os ônibus, o
qual não se pode atravessar antes de pagar a passagem ao cobrador. O símbolo do
MPL é uma “catraca” em chamas… É bom lembrar que o transporte público, que em
sua origem era um serviço público, foi privatizado em todas as cidades do país
e pertence a empresas capitalistas de práticas mafiosas. As prefeituras têm, no
entanto, controle sobre o preço das passagens.
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A
inteligência tática do MPL foi colocar como prioridade um objetivo concreto e
imediato: barrar o aumento do preço das passagens decidido pelas autoridades
locais nas principais cidades do país, tanto as geridas pela centro-direita
como pela centro-esquerda (o Partido dos Trabalhadores, que se tornou
social-liberal). Recusando os argumentos pretensamente “técnicos” e “racionais”
das autoridades, o MPL mobilizou milhares de manifestantes, que foram duramente
reprimidos pela polícia. Estes primeiros milhares de manifestantes se tornaram
dezenas de milhares e logo milhões (com o preço, certamente, de algum
esvaziamento político), e os poderes locais se viram obrigados, precipitadamente,
a cancelar os aumentos. Primeira lição importante: a luta pode ser ganha, e
fazer com que as autoridades responsáveis retrocedam!
Uma
vez que assumiu este combate prático e urgente, o MPL não deixou em nenhum
momento de destacar seu objetivo estratégico: a tarifa zero, o transporte
público gratuito. Para eles é preciso, segundo a Carta de Princípios, “retirar
o transporte público do setor privado colocando-o sob o controle dos
trabalhadores e da população”. É o que os militantes do MPL chamam “perspectiva
classista” de sua luta. É uma exigência de justiça social elementar: o preço do
transporte é proibitivo para as camadas mais pobres da população, que vivem nas
periferias degradadas das grandes cidades, e dependem do transporte público
para trabalhar ou estudar. É uma reivindicação que interessa diretamente aos
jovens, aos trabalhadores, às mulheres, aos habitantes das favelas, ou seja, a
grande maioria da população urbana.
Mas
a tarifa zero também é uma pauta profundamente subversiva e antissistema, no
sentido do que se poderia chamar um método de programa de transição: como
observa a carta de princípios “deve-se construir o MPL com reivindicações que
ultrapassem os limites do capitalismo, vindo a se somar a movimentos
revolucionários que contestam a ordem vigente”. É um simpático exemplo do que o
filósofo marxista Ernst Bloch chamava utopia concreta. Certamente há cidades no
Brasil ou na Europa em que esta proposta pôde se realizar. Numerosos estudos
especializados demonstram que ela é completamente possível, sem causar déficit
às administradoras locais. Não deixa de fazer sentido que a gratuidade é um
princípio revolucionário, que se contrapõe à lógica capitalista, na qual tudo
deve ser uma mercadoria; é, portanto, um conceito insuportável, inaceitável e
absurdo para a razão mercantil do sistema. Mais ainda quando, como propõe o
MPL, a gratuidade dos transportes é um precedente que pode abrir caminho à
gratuidade de outros serviços públicos: educação, saúde, etc. De fato, a
gratuidade é o presságio de uma sociedade diferente, baseada em outros valores
e outras regras diferentes das do mercado e da ganância capitalistas. Daí a
resistência desesperada das “autoridades”, tanto conservadoras, como
neoliberais, “reformistas”, de centro ou social-liberais.
Existe
ainda outra dimensão da reivindicação pelo transporte gratuito, que até o
momento não foi suficientemente defendida pelo MPL (mas que começa a se dar
conta): o aspecto ecológico. O atual sistema, totalmente irracional, de
desenvolvimento ilimitado do uso do carro individual, é um desastre pelo ponto
de vista da saúde dos habitantes das grandes cidades – milhares de mortos por
causa da poluição do ar diretamente provocada pelos escapamentos – e pelo ponto
de vista ambiental. Como se sabe, o carro é um dos principais emissores de gás
com efeito estufa, responsável pela catástrofe ecológica das mudanças
climáticas. O carro continua sendo, desde o fordismo até hoje, a mercadoria de
destaque do sistema capitalista mundial; consequentemente, as cidades estão
completamente organizadas em função da circulação de automóveis. Agora bem,
todos os estudos mostram que um sistema de transporte coletivo eficaz,
universal e gratuito, permitiria reduzir significativamente o uso do transporte
individual. O que esta em jogo não é só o preço da passagem de ônibus ou de
metrô, mas outro modo de vida urbana, sensivelmente, outro modo de vida.
Em
resumo: a luta pelo transporte público gratuito é, de uma só vez, um combate
pela justiça social, pelos interesses dos jovens e dos trabalhadores, pelo
princípio da gratuidade, pela saúde pública, pela defesa dos equilíbrios
ecológicos. Permite que se formem amplas frentes e se abram brechas na
irracionalidade do sistema mercantil. Não deveríamos, na França e em toda a
Europa, nos inspirar no exemplo do MPL impulsionando em nossas cidades
movimentos amplos, unitários, autônomos, de luta pela gratuidade dos
transportes públicos?
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