1
Em práticas
de texto, a ênfase no "conteúdo" está ligada a uma certa noção de
"naturalidade" na expressão.
A forma
"natural" é a que revela o "conteúdo" de maneira mais
imediata. Preocupações com a "forma" obscurecem o
"conteúdo".
2
Essa
"naturalidade", porém, só é possível através de um automatismo.
Só quern
obedece a um automatismo pode ser natural.
Isso que se
chama "naturalidade" é uma convenção. O natural é um artifício
automatizado, uma forma no poder.
A
despreocupação com a forma só é possível no academicismo.
3
Naturalismo,
academicismo.
O apogeu do
naturalismo (Europa, segunda metade do século XIX) coincide com a explosão do
jornalismo.
O discurso
jorno/naturalista representa o triunfo da razão branca e burguesa: o discurso
naturalista é a projeção do jornalismo na literatura.
4
O discurso
jornalístico é discurso automatizado.
Sua
automatização decorreu de razões práticas, do caráter de NEGÓCIO que o
jornalismo teve desde o início: a necessidade (contábil) de rapidez de redação,
num veículo/mercadoria de edição diária, a necessidade de anonimato, sendo o
jornal (a empresa) uma entidade impessoal a abstrata.
5
A
"enxutez" do discurso naturalista do século X1X é obtida através de
uma tremenda repressão exercida sobre a fantasia mítica: é um discurso
castrado.
A disciplina
do discurso naturalista, sua contenção, são calvinistas, puritanas, reprimidas
a repressoras (Reich explica).
6
Projetado na
literatura, esse discurso "impessoal", "objetivo" e
"natural" é investido de "normalidade". Na raiz, a palavra
"normalidade" indigita sua origem de classe. "Normal" vem
de "norma". Norma é lei: poder. O discurso jorno/naturalista é o
discurso do Poder.
7
Esse poder é
branco, burguês, greco-latino-cristão, positivista, do século XIX.
Daí, as
literaturas Latino-americanas, em seu momento de afirmação, privilegiarem as
variantes ditas "fantásticas" do realismo.
8
No discurso
jorno/naturalista, o poder afirma, sob as espécies da linguagem verbal, a
estabilidade do mundo, DE UM CERTO MUNDO, suas relações e hierarquias. O
discurso, esse, em sua aparente neutralidade, é ideológico, embora invisível
(ou por isso mesmo): é ideologia pura.
Sua
estabilidade é catártica: nos consola e engana com a imagem de uma estabilidade
do mundo. De UMA CERTA ESTABILIDADE. Uma estabilidade relativa à visâo do mundo
de uma dada classe social muito bem localizada no tempo e no espaço.
9
Contra a
"neutralidade" do discurso naturalista branco, levantam-se os
discursos reprimidos das culturas oprimidas, o frenético dinamismo mitológico
dos fodidos, sugados e pisados deste mundo.
Dinamismo,
também, de formas novas.
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A
"neutralidade" (objetividade) do discurso jorno/naturalista é uma
convenção. Assim como a clareza, apenas uma propriedade (retórica) do discurso.
Não há texto
literário sem perspectiva, quer dizer, sem intervenção da subjetividade.
No texto
naturalista (ou jornalístico), essa perspectiva é camuflada, sob as aparências
de uma objetividade, uma Universalidade que - supostamente - retrata as coisas
"tal como elas são".
11
Invoca-se em
vão o nome do realismo, que se procura confundir com o naturalismo.
Realismo,
quer dizer, discurso carregado de referencialidade, não é sinônimo de
naturalismo.
Ao contrário.
O discurso
realists nâo camufla a perspectiva.
Realistas (e
não naturalistas) são textos como o "Ulysses" de James Joyce.
Ou as
"Memórias Sentimentais de João Miramar", de Oswald de Andrade.
12
O naturalismo
é incompatível com o experimento. Com a linguagem inovadora.
O realismo
favorece-os.
13
A atitude
naturalista convencional não enxerga a realidade, no experimento em prosa.
Assim como
não percebe sentimento no experimento poético. Pois identifica a expressividade
com os signos convencionais do expressivo.
14
Uma prática
do texto criativo, coletivamente engajada, tem a função de desautomatizar. De
produzir estranhamento. Distanciamento.
É
desmistificação da "objetividade" inscrita no discurso naturalista.
Essa
objetividade é falsa.
Ela apenas
reflete a visão do mundo de dada classe social, de determinada civilização.
Sua pretensão
a "discurso absoluto" é totalitária.
15
Violação.
Ruptura. Contravenção. INFRATURA.
A poesia diz
"eu acuso". E denuncia a estrutura.
A estrutura
do Poder, emblematizada na "normalidade" da linguagem.
16
Só a obra
aberta (= desautomatizada, inovadora), engajando, ativamente, a consciência do
leitor, no processo de descoberta/criação de sentidos e significados,
abrindo-se para sua inteligência, recebendo-a como parceira e co-laboradora, é
verdadeiramente democrática.
in Folha de S.Paulo:
Folhetim, 04/07/1982. Reproduzido em ANSEIOS CRÍPTICOS, Criar Edições,
Curitiba, 1986, p. 69 a 72.
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